18 março 2016

Falta Pouco


Te devoro e te deserto. Reinvento o cheiro do teu sexo, destruo tua bondade nas maiúsculas noites, suo esse desejo como febre desatinada. Gota quente do teu líquido porco que escorre por entre os poros e escapa nas arestas dos cantos amargos da tua língua em minha língua - em outras línguas. Incontáveis madrugadas tento te reescrever já que não consigo te desacender. Faço preces secretas aos deuses inóspitos. Ressuscito a memória da memória da memória. Nossas almas ofertadas em goles de vodka, cigarros baratos e pratos de cocaína. Refaço milimetricamente todos os nossos passos. Sem recordações do nosso amor, esqueço-me das horas. Pelos caminhos, sopro maconha dentro de bocas sujas de palavras mal escolhidas. A cidade me devora. Perplexa. Dissimulada. Herege. Receio ser morta por uma só lágrima de chuva. Minha saliva se desfaz no sal da tua pele agreste. Ovos germinam pelas entranhas do meu ventre, como uma serpente ancestral grávida de uma criança mítica. Matei nossos filhos. Te devoro e te deserto. Ando por entre ruas escuras e becos sem saída. Me perco por entre linhas labirínticas no esplendor de nuvens nebulosas. Danço a dança dos antepassados em teus ouvidos. Mordo outros lábios em busca do amargo do teu sangue. Os demônios do nosso amor florescem e criam olhos obscenos como olhos de gente. E mãos e línguas, como línguas de gente, e dentes como dentes de gente. E mentiras - como mentiras de gente. Disse-te que tudo seria de novo e seríamos de novo. Disse? Tudo que me sobreviveu, me agride. Dentro do teu corpo, insaciável e promíscuo, eu te devoro, como um demônio sedento em meio ao deserto. A vida cruel por ser vida. Parto de ti, viajo nos teus caminhos, corro e perco-me e desencontro-me no enredo de ti, nasço, morro, oco, linhas invisíveis. Caio, avanço, regresso. Na prisão do meu peito, teu nome se torna grito. A cada quilometro, um mês. A cada metro, um dia. Como caminhar sem recuar, se seguir em frente é também lembrar de você? Quanto falta? Viro-me de repente e só vazio, silêncio intenso, palavras vagas em cada linha de claridade. Eras um pouco muito de mim. Quanto é que ainda me falta? – perguntava-me. Inventava-me e repetia-me como um mantra: falta pouco, falta pouco.
Por. Michel Letto

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