30 maio 2015

Obriga-Me

 E por que haverias de querer a minha alma na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas, obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia nem omiti que a alma está além, buscando aquele Outro.
E repito: por que haverias de querer a minha alma na tua cama? Jubila-te da memória de coitos e de acertos. Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Por. Hilda Hilst

Ladra

 Sou uma mulher de gostos e versos. Um pouco ladra, eu diria. Roubo histórias, bordo palavras, costuro sonhos, desato pensamentos. (...) Me aproprio indevidamente de vidas e falas. Não leve a mal se por ventura algum dia o seu sossego for passear junto comigo...  
 Por. Clarissa Corrêa

07 maio 2015

Restinho




Encontrei sua camisa preferida enquanto arrumava a bagunça que a gente deixou. Foi o primeiro sinal que reparei de que você continuaria aqui, me arrastando prum punhado de lembrança chata, típico de relacionamento que acaba. Achei que quando você partisse seria fácil porque, sei lá, achei que a gente ia se acostumando. Mas tem sempre alguma coisa de triste, acredito eu, em alguém que vai. Pelo menos pro outro que fica. Encontrei nossas músicas preferidas gravadas nas minhas memórias, sem pretensão alguma de sair. E fui cantarolando nós dois enquanto colocava meu quarto no lugar, numa tentativa de colocar a vida no eixo, numa tentativa de te tirar de mim. Como se arrancar alguém fosse prático como limpar o quarto. Não é novidade que falhei em me limpar de você.

Ainda na cama, meio quente, daquelas coisas que acabaram de ser largadas, achei o cafuné que você me fazia antes de dormir. E pensei: como é que a gente se acostuma à ausência? Como é que eu vou me acostumar sem você? E as aulas de história que você dava quando eu não sabia sobre algum assunto, e as mensagens simples que cê me mandava às 15h30 quando sabia que eu só queria que o dia terminasse. E todo dia você fazia questão de me ver bem. Tirando o dia que você me deixou.
Eu não achei que era amor. Digo, eu falaria de amor em outros textos, colocaria amor em outras histórias. Mas não com você. Achei que com a gente tinha passado longe disso. Era paixão. Achei que tinha companheirismo, amizade, filme cult, uns porres loucos no meio da semana de trabalho e tesão. Se me perguntassem de você, eu não falaria das coisas estranhas que o coração faz a gente fazer. Eu diria apenas o quanto meu corpo procurava o seu nas noites frias. Ou do quanto meu corpo ainda te procura.
E, para a minha surpresa, de todas as coisas que você deixou, é justamente aquele restinho de amor no canto do quarto, que eu nem sabia que estava lá, que eu mais queria que você tivesse levado. Porque, porra cara, o problema do amor é quando ele resolve ficar mesmo depois de tudo já ter acabado.
Por. Karine Rosa

Não foi Suficiente



Os seus lábios tão secos e eu não consigo molhar, não é da minha saliva que você precisa, percebi isso ontem quando vi que você me beijava de olhos abertos. E depois veio um beijo na testa. Desculpe-me por isso. A gente nunca acerta a peça, você não gosta não se comove, me contou que também não gosta de teatro, não sente a emoção rodeando a sala enquanto eu tremo, eu juro que tremo, a cada cena em que a protagonista grita desespero e abandono no monólogo. Você me jura que prefere não ficção e eu queria que fosse mentira. Não é nunca foi, você me fez sentir como se eu fosse à atriz do palco, sentia nada rodeado por mim, não sei nem se chegou a sentir. É que eu sou ficção e você prefere outro tipo de companhia. Desculpa por isso também.

Sabe o que eu senti quando te conheci? Senti que talvez eu pudesse te fazer dar uns saltos, umas piruetas, te puxar pra dançar comigo e te perguntar no meio de um salão cheio de gente se você queria ser meu par. Cê não acha que eu sei dançar, não é mesmo? O problema pode ter sido esse, a gente pode ter insistido, eu posso não ter pisado no seu pé, mas você sentiu quando viu que não dava pra me conduzir. Não rolou. Nem a dança, nem a gente. No domingo eu sou sua segunda-feira, eu peso. Você retruca pra deixar pra lá, eu tento e você me diz que continua sentindo falta. Sente o buraco e ele vira abismo pra mim. Vira pro lado e mexe no cachorro, mexe no seu labrador e eu vejo o carinho, mexe nele e eu sinto como deveria ser. Não é. Eu te entendo, não sou eu.

Não deu pra te ajudar nas madrugadas de terça porque você estava no cursinho e eu não entendo de matemática. Não deu pra encaixar a conchinha na cama porque você tem pavor de que te abracem no calor. Não rolou aquela viagem porque eu queria Oeste e você sempre ia pro Leste. Não deu pra curar alguma coisa aí dentro porque não era pra ser eu, não foi comigo que você encontrou algo pra preencher o vazio.

Mas é uma pena.

É uma pena porque eu realmente queria ter te levado prum deck às 18h em ponto, queria te mostrar meu pôr-do-sol preferido. Queria ter dito no jantar de 11 de setembro que não tem problema, que você estava seguro comigo mesmo que não fosse 2001. Queria ter te explicado que todo mundo tem sua tragédia pessoal e a sua eu faria questão de carregar contigo, seja o fardo ou a parte boa. Eu queria ter sido suficiente, e dói pra caramba escrever essa palavra. “Suficiente”, que eu já acho pouco, mas bastava. Nem isso. Não dava. Mesmo que eu acordasse cedo, mesmo que eu batalhasse, mesmo que eu dissesse que sim, eu aceito ir com calma. Não era eu. Você sabia que não era eu, nunca disse, tudo bem, nunca pediu desculpas por isso também. Pessoas vêm e vão. O problema é o que fica. O problema é o que eu sinto com o que não fica. 
Por. Daniel Bovolento