15 outubro 2016

Ela (A Carta) VII


Durante o dia, os afazeres, os compromissos, as visitas constantes. Alguns fatores a fizeram mudar a rotina e se tinha algo que a deixava completamente “transtornada” eram mudanças que exigissem mais do seu físico. Mexer em seu relógio biológico era tão perigoso quanto atirar pedras numa colmeia. Mas uma coisa que essa garota tinha de “incrível” era a capacidade de “sacrifício”. Se tinha algo que literalmente a fazia esquecer-se das suas overdoses de sono e seu total desprezo pelas primeiras horas do dia, era a família. Em resumo da opera, sua construção de cartas estava completamente no chão. E toda aquela sua ânsia de controle sobre tudo, toda aquela postura firme e convincente de “segurança” estava a um fio de ruir assim como seu castelo. Parece que de tanto dizer “meu lado certo é o errado”, assim se fez.

Fora todos os seus problemas (algo que não era especificamente só com ela, afinal, quem de nós não tem problemas?) ainda havia aquela situação indigesta. E voltamos a tão cansada e sofrida tecla... O que foi dito, o que não foi dito, o que talvez nunca seja. As duvidas, as certezas, as respostas, as perguntas. Tudo parece caminhar em circulo. E você fica ali, no meio de tudo esperando que ora ou outra, a coragem vença e resolva aquele emaranhado de inquietações que lhe causam tanto medo. Não é novidade pra ninguém que quando ela adota o silencio, a porra ficou seria. Logo ela, que fala pelos cotovelos, que eleva o tom por qualquer bobagem, que desce do salto e atira copos, talheres, que argumenta de peito cheio, quando se cala, de duas uma. Ou as palavras sumiram pelo choque, ou esta literalmente ferida por dentro. E ele a feriu, mas ela sempre arrumava uma maneira de se reinventar, de se restaurar, de lidar com a dor que vez por outra vinha forte e que bizarramente, ela a fazia aliviar buscando por ele. Entre os livros, sapiando os canais da TV, ouvindo repetidamente as canções que descaradamente “roubaram” pra eles, relendo suas cartas, ouvindo uma, duas, três, quatro e muitas vezes até dormir, os áudios dos seus melhores aos piores momentos, que salvou ironicamente numa pasta, nomeada “delete”. Sadismo? Masoquismo? A essa altura, o único nome que ela conseguia dar a essa “tortura” era “sinto muito, sinto mesmo”.

E de sentir ela entendia, ao menos do sentir dela. Por mais que se calasse, que se segurasse tudo que ela deixava de dizer, aquilo gritava constantemente em seu peito. Por mais que ela tentasse disfarçar, continuar com sua vida, vez ou outra suas emoções passavam pela apertada aresta e se faziam enxergar. Fosse no marejar dos olhos no meio de uma conversa casual num churrasco de domingo, ou sozinha, pega repentinamente no banho ou mesmo passando um café no meio da madrugada sozinha na cozinha. As coisas com ela não tinham aviso, não havia alertas ou toques de recolher. E quando acontecia, ela sequer era capaz de conter. A avalanche de raiva, a inundação do choro ou mesmo a euforia do riso, simplesmente rompiam. E com isso ela estava acostumada, fosse o que fosse, vinha e pronto. Ela só precisava de um tempo, daquele tempo (maldito tempo). Dela com ela. Onde nada nem ninguém poderia ou conseguiria salva-la. Ela havia adotado essa técnica como rota de fuga. Como se em seu coração houvesse uma passagem secreta (ou um quarto do pânico, já que quando ela entrava naquela porra de bolha, ou casulo ou sei lá que caralho a quatro, não saia por nada até se sentir segura).

Noite dessas, ela se levantou (tem se levantado muito) e notou que havia um envelope debaixo da porta. Cerrou o cenho, encolheu as pálpebras e se aproximou. Assim que o apanhou sentiu ressecar a garganta, percebeu que não havia remetente, sequer um carimbo que pudesse lhe dar pistas de quem o teria colocado ali. Mas seu coração ou seu sexto sentindo, seu dom místico (fada/bruxa como dizem por ai) soou o alarme. Respirou algumas vezes, tirou os fones e alinhou o envelope sobre a mesa. As mãos espalmaram a superfície gelada e o ar começou a faltar antes mesmo dela começar a passar os olhos no que estava escrito ali, se é que tinha algo escrito. Milhões de coisas passaram pela sua cabeça, agora a certeza era tão segura que dezenas de perguntas, respostas, novas, antigas, começara, a sufocar sua garganta e pesar em sua cabeça. Ela abriu o envelope e assim que sua retina passou nas primeiras palavras ela sentiu o frio percorrer-lhe a espinha. 

Rapidamente leu, depois leu mais uma, duas, e releu, e espremeu as palavras, e se alimentou das frases, e consumiu as emoções que vieram cunhadas nas palavras dele, e sentiu despertar a raiva que lutou pra adormecer, e seu rosto ardia respondendo a emoção que não podia conter. E seus olhos inundaram, e seus sentimentos acordaram como se nunca tivessem corrido o risco de morrer. Estaria ele tentando pela ultima vez mostrar a ela, que embora estivesse há 179 dias fora de casa, ela não havia em momento algum, deixado de estar com ela? Estaria ele, desta vez disposto há atropelar esses meses e provar pra ela, que não há lugar que ele queira estar, senão com ela? Estariam eles, dispostos a esquecer, a sentar e esclarecer todas as duvidas pra poderem deixar essas 4.296 horas pra trás e recomeçarem o resto dos seus dias juntos?

Ela apanhou aquela carta, colocou-a sobre a cama e mais uma vez leu, iria responder, desta vez diretamente, sem sombras, sem fantasmas, como sempre o fez. Do jeito dela, franco, sincero, direto. Na lata, como ela gosta dizer.
Por. Bell.B

4 comentários:

  1. "Não é novidade pra ninguém que quando ela adota o silencio, a porra ficou seria" mano... sério, quando eu era atingido por esses silêncios eu ficava puto. Porque eu não sabia como agir, o que fazer... e no fim eu acabava fazendo mais merda ainda.

    Maaaaas, agora que uma carta (ainda vou fazer um estudo de, por que nós, líricos, gostamos dessas coisas nostálgicas) vai mudar a cabeça birrenta dela (sim, ela é birrenta, admita) ele tem grandes chances de resolver tudo... ou fuder tudo de vez.

    A próxima, se te conheço bem o suficiente, é a season finale... te mandei algo no outro canto, depois olha lá e analisa a proposta. Estou entediado com meu jeito de escrever (mesmo quebrando quarta parede)

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    1. Embora eu me recolha muito "neste meu casulo" poucas pessoas e somente as que realmente me importam, conheceram esse estrondo silencioso. É LorúPrê, qnts vezes não te ensurdeci com isso. E a questão era bem complicada né, até ceder, era posta a mesa digna do banquete real. Prato principal? Orgulho a moda da casa. Ai ai... mas que bom que uma vez ou outra, a fome apertava em um dos lados.

      Pois é... "a carta". Foram na verdade duas. E sim, sou birrenta. Alias, sou muito mais coisas. E entre elas, extremamente rancorosa com uma dose apimentada de vingativa. Será que adquiri isso por conviver por muitos anos com um certo ""escorpiano"", vai saber... Em resumo?

      Oito parágrafos foram o suficiente pra que eu concluísse "a minha" parte e assim, dou por encerrado a saga. Quanto a proposta que me fez, aceito o desafio. Vamos testar a minha capacidade de temperar personagens com os meus melhores ou piores resquícios pessoais. rs

      Uma bala. Gire o tambor e aperte o gatilho.

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  2. Penso que ainda conheço sua rotina, conheço seus afazeres, seus compromissos e até me lembro dos dias e dos horários em que sua sua casa está cheia de visitas (foi por esse motivo que adotamos um, horário só nosso).
    Vc sempre me disse como ficava quando era acordada antes do seu horário e por isso as primeiras ligações que te fiz durante a manhã eram acompanhadas de um receio, de como vc acordaria naquela manhã.
    Realmente vc se "sacrifica" e se faz presente sempre que precisam de vc, vc deve se lembrar que te disse que essa sempre foi uma das coisas que sempre admirei em vc.
    As duvidas, as certezas, as respostas, as perguntas isso vc sempre teve independente do acontecido não é? Penso eu que nós dois sempre tivemos rs
    Pelo que vejo não sou só eu que conheço esse seu "silêncio" e muitas outras coisas.
    Te feri? Assumi o que fiz. Te pedi perdão, tentei por mais de uma vez deixar tudo explicado mas vc preferiu a distância... Lembra?
    Não pense que EU também já não li e reli muitas coisas por ai que eram nossas, somente nossas, até mesmo as músicas, audios de wpp, essa porra toda.
    Naquela tarde eu preferia que vc tivesse descido do salto e jogado pratos, talheres, copos, que batesse a porta, me esmurrasse mas nunca que chegasse ao ponto de botar pra fora... Isso eu não esperava e tenho meus motivos.
    Agora, depois de 179 dias (como vc frisou bem) muitas são as pessoas que cobram minha presença aqui ou ali mas acho que sem querer estou mudando certas coisas naquela minha rotina.

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    1. Sempre mesmo, é preciso que me passem muita segurança pra que os fantasmas da duvida desapareçam.

      Pelo que você vê e pelo que muitas pessoas acompanham aqui, não é segredo ou difícil saber sobre como sou ou quem sou. Afinal, este é como o meu diário "ultra pessoal" e com o mínimo de atenção, ainda que não me conheçam cara a cara, fica bem fácil falar sobre as minhas peculiaridades.

      Ai ai... vamos lá, acho que só falta aqui pra terminar os questionamentos. Feriu sim, e eu já respondi a isso em outro lugar e diversas vezes, mas não deixo nada pendurado, então vamos lá. Mas eu também te machuquei, então acho que esse placar terminou num um a um bem pontuado. E sim, pediu perdão e demorei a digerir os fatos. "Coisa de mulher", somos complicadas. Mas hoje, depois de tudo, cheguei a conclusão que nada demais aconteceu. Esta desculpado, perdoado, tudo certo. Sem pesos ou chagas.

      Quando comentou, haviam se passado 183 dias. Hoje, 201 dias depois, tudo parece ter outro lado, outra perspectiva. Nada como o tempo e os animos mais calmos. Eu demoro a entrar no estagio calmaria, mas quando isso acontece, muita coisa revirada com as tempestade se reorganizam. E fico feliz por eu conseguir agora tratar tudo isso com mais leveza. Cada vez mais acredito no ditado "e tema que já uso muito"...

      ... depois de todo temporal, vem a bonança.

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