Voltar pra minha casa naquela noite foi um dos piores momentos da minha vida. Saber que ela não viria correndo ao meu encontro foi realmente terrível. Já havia tido algumas frustrações, desentendimentos, fim de relacionamentos e embora alguns tenham me abalado, nenhum me desestruturou como desta vez. Os pronomes possessivos até alguns dias atrás, eram os meus favoritos. Mas hoje em especial, isso ao invés de me proporcionar prazer estava me deixando mal.
Minha casa, meu sofá, minha cozinha, meu banheiro, minha cama, minha escova de dente.
(Maldita hora que fui escovar os dentes) Caralho... Foi justamente quando fui ao lavatório que a coisa ficou seria. Me dei conta de que a escova estava seca. Lembrei-me da nossa primeira conversa mais intima. Ela me fez prometer
(embora odiasse promessas) que em nossa casa só haveria uma escova de dente. Eu obviamente concordei, porque a teoria dela sobre
“um casal ter escova individual” foi totalmente convincente
(e vou te contar uma coisa cara... ela era aquele tipo raro que te fazia comprar limões secos, fazendo acreditar na promessa de que eles dariam a melhor laranjada que você já tomou na vida). Eu estava com a pasta na mão, mas eu não consegui deposita-la na cerda. Me encarando no espelho e racionalmente me vendo como um completo idiota, me peguei degustando a escova. Qualquer pessoa em seu estado normal agiria de duas formas, escovaria o dente ou jogaria a
porra da escova de dente no lixo. Mas aquela história de que
“a convivência passa costumes e manias” de fato era verídica. Eu havia me contagiado das maluquices dela. Entre tantos TOC’s e compulsões eu tomei pra mim, também algumas de suas bizarrices.
(Eu separava as balas azuis das demais, fumava em todo canto da casa, até tomei um porre numa festa uma vez em uma das nossas brigas, coisa que há muito eu não fazia. Comecei a me ver de forma diferente, talvez de tanto ela me dizer como me via, meio que me convenci de que era “tudo aquilo que ela dizia”) Não sei precisar por quanto tempo
“beijei” a maldita escova. Recobrando parte de minha lucidez, fiz as demais coisas que tinha a fazer
(tudo no modo automático) e me deitei.
Meu celular calculadamente ficava num ponto exato na cama
(somente naquele ponto cego havia sinal e eu precisava de sinal) tanto quanto precisava dela. Mas não podia interromper o tempo, embora quisesse muito. Então a rotina começou estranhamente diferente depois de ter confortavelmente me adaptado ao acaso e imprevisto que era
(con)viver com ela. Me arrastei feito um zumbi por exatos quatro dias. Trabalho, casa, família, cotidiano. Tudo feito metodicamente até chegar às pausas em que eu deveria estar com ela. E
puta que pariu, ai é que
fodia tudo, porque nesses
“espaços de tempo” literalmente ele parecia não passar. Poderia ser uma hora e meia do almoço ou mesmo os quinze minutos de pausa pro café,
porra... Não passava. E eram nesses momentos que a minha cabeça metralhava uma caralhada de coisas. Voltava ao ponto antes dela onde eu tinha controle sobre tudo, no tempo com ela onde não tínhamos domínio sobre nada, e nesse agora onde nada era de fato,
porra nenhuma. Eu ensaiava discursos, estudava as respostas das perguntas que sei que ela não fez por estar profundamente magoada mas que deveria ter feito por ser curiosa, eu digitava as mensagens e não enviava, ficava um tempão encarando o numero dela na agenda e me segurando pra não ligar. Fui seguindo, desesperado por noticias e por saber o que do outro lado acontecia. Nada.
Eu sabia dos seus compromissos, dividíamos tudo e algo que era crucial na nossa falta de controle era o controle de nossas agendas. Isso era imprescindível pra que pudéssemos nos aproveitar o máximo possível. Acordei naquele sábado e fiz minhas obrigações. Estava lavando a louça do almoço quando o
“bip soou”. Sacudi a cabeça já mentalizando a resposta
“não dá!” pra qualquer convite. Fui até a mesa e subitamente todas as minhas
“desculpas elaboradas” desapareceram da mente e precisei me sentar.
“Me liga agora”. Imediatamente disquei, o coração disparado, dezenas de coisas me passando a mil pela cabeça. Mas respirei fundo porque eu sabia que precisava naquele momento
“apenas ouvir”. Foi vinte vezes pior do que no dia em que ela me ligou pela primeira vez. Afinal, esta ligação poderia ser a ultima.
- Oi
* Porque fez isso?
- Eu não sei.
* Não sabe?
(silêncio)
- Onde você esta?
* No salão, hoje tenho um aniversário
- Eu sei.
(silêncio)
A ligação foi interrompida e não consegui retornar. Tentei umas três vezes, mas não consegui, caia direto na caixa.
Caralho de desespero. Claro que por estar fora poderia ter acontecido mil coisas, e também estava no salão, o cabeleireiro deve tê-la chamado ou a manicure ou sei lá. Não tentei mais, mas o resto do meu dia foi uma merda. E sei que o dela seria também. Aqueles poucos minutos, as pausas longas que disseram tanta coisa sem serem ditas. Imaginá-la do outro lado da linha, abatida, estraçalhada e lutando pra se recompor foi o que de fato me esmagou. E lá vieram os pensamentos assombrosos e os fantasmas de outrora. Os deixei arrastar as correntes, nada poderia remediar o que aconteceu. Embora eu soubesse que muito poderia ser feito pra recomeçar. Mas tantas outras coisas me impediram de continuar a tentar. Outra vez o tempo começou a passar e a única coisa que me dava acesso direto a ela, eram os (poucos) amigos em comum e os lugares que eu sabia que ela gostava de frequentar.
E depois da longa jornada que percorri até ela, eu voltei ao ponto de partida. É claro que desta vez seria mais complicado. Eu não queria me esconder, mas recuei ao anonimato. Passei a observá-la
(mais) de longe. A colher informações e focar no que diretamente estava vendo. Muitas vezes surtei, quis socar paredes e portas, emergiam a raiva, o ciúmes e aquela postura dela de
"estou bem" era o que acabava comigo. Filha duma
puta, eu sabia que ela estava como eu, mas o mulher do
caralho, quando queria esconder o que sentia, o fazia com maestria e se não a conhecesse tão bem, certamente acreditaria. Alguns meses se passaram, e casualmente nos falamos por algumas vezes. Num impulso liguei mas não deixei que ela atendesse, enviei uma mensagem, ela
“simpaticamente” respondeu e disse que não teria problema e atenderia mesmo com a casa cheia. Eu no tira-teima liguei outra vez e ela realmente atendeu. Ela poderia não ter equilíbrio, não ser estável, mas uma coisa que ela tinha na mesma proporção da sua falta de controle, era a palavra. Realmente ela estava com visitas e trocamos poucas palavras enquanto eu estava atento às vozes que a cercava. Mais alguns minutos ouvindo-a sem poder dizer tudo que eu queria. Ela precisou desligar, mas eu continuei ali, ligado nela na verdade eu não conseguia me desconectar dessa mulher. Foi a ultima vez que a ouvi. Embora ela tenha tentado descontrair por estar com o pessoal eu a conhecia, seu tom era divertido, ela fez algumas piadas com o pessoal, deu risada
(e que saudade daquele riso), mas o tom lá no fundo, ainda era dolorido. Quis ligar outras vezes, mas analisando friamente o timbre daquela ultima ligação, achei melhor me afastar.
Embora tenha decidido ficar longe
(considerando a vontade dela) ir ao seu encontro era inevitável, eu poderia estar fazendo qualquer coisa, até estar distraído, mas sempre alguma coisa me levava até ela, uma música nossa, uma música cafona dessas que nós mesmos tirávamos sarro, uma cena de filme, um trecho lido, uma propaganda. Uma jujuba, um cheiro de café, o suor escorrendo na garrafa gelada de coca cola. A solidão e o vazio. Até isso me remetia a ela.
Maldita Mulher. Dona de tudo que eu não sabia que tinha condutora de todos os sentidos que eu havia esquecido que era capaz de sentir. Bela
(feia) adormecida que fez despertar as minhas emoções mais intensas. Bruxa do meu conto de fadas não escrito. Eu precisava fazer alguma coisa, precisava trazê-la de volta, então comecei a deixar recados por ai, espalhei por cantos que sabia que ela passaria, bilhetes, cartas, até cantei. Aprendi isso com ela...
"quando as palavras faltam ou quando não consigo expressar exatamente o que sinto, eu canto." Espero que dê certo, espero que eu consiga alcança-la e que ela venha acabar com essa fome excessiva, com as minhas noites insones, com essa maldita náusea e tremedeira e que de uma vez por todas, de rumo a minha desorientação emocional. Por que eu não estou mais sabendo lidar com essa abstinência.
Por. Bell.B