18 março 2016

Apocalipse

 
Lembro de nós dois como se tivéssemos tido um passado que nunca existiu. Mais parece a distante memória de algum filme que vi e esqueci o final. Éramos eu e você, e continuaríamos a ser até onde nos permitiriam. Dentro da cidade miúda e inútil, cheia de um todo tão vazio que chegava a doer, te encontrei. Estava numa dessas vielas feitas de pedra que cortam o Centro. Sentada num batente vermelho sangue de tinta gasta, com cigarro em punho e sorriso apontado ao sim. Você já era toda você. Um contraste absoluto que me aprisionou e me manteve teu, até mesmo antes que eu realmente fosse. Teus ruídos massacravam o silêncio pacato que nos envolvia, era a voz que existia dentro da voz e dizia muito mais do que a própria voz queira dizer. Jamais cansei de ouvir, eu devorava toda palavra, nunca matei minha fome de ti. Quando a noite caía a gente subia pela rua de trás, acompanhados pelas melhores canções, a lua observava e testemunhava calada quando por vezes infinitas nossos corpos derretiam de prazer. Depois do gozo vinha a prosa, não cansávamos de ser poesia. A madrugada chegava sempre devagar, não dava aviso e nem esbarrava em ninguém, quando a gente percebia já estava dentro dela e não sabíamos mais como voltar. No fim, recolhíamos o resto de nós, fumávamos todos os cigarros e depois as guimbas de todos os cigarros, porque o fim quase nunca é o fim, sempre resta um pouco mais a viver, a amar, e nós éramos isso, éramos uma guimba esquecida que depois de acesa, sempre rendiam ainda mais dois bons tragos que preenchiam a alma e acalentavam o coração. Você sempre disse que a eternidade nos enlouqueceria e que nós resistiríamos até que o eterno inexistisse, que mesmo depois do Apocalipse ainda seríamos nós, e teríamos de nós mil e uma guimbas pra acender. Mas paramos de fumar e nos perdemos no meio do caminho.
Por. Frederico Brison 

Um comentário:

  1. Algo nesse texto me puxou, abraçou e se aconchegou... Depois de dividirmos a mesma fumaça, o mesmo desejo.

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